Vamos no texto a seguir apresentar as principais características dos maus-tratos físicos na infância.
Agressores mais comuns
Os agressores mais comuns são os pais biológicos, adotivos e madrasta/padrasto. Segundo AZEVEDO e GUERRA (2000), as estatísticas internacionais apontam que 70% das agressões são provenientes dos pais biológicos.
O cônjuge que agride mais os filhos é a mãe. Isso acontece porque a criança passa geralmente a maior parte do tempo em sua companhia. Já o pai, por conta de ter maior força física, é o que causa lesões mais graves nos filhos quando os pune corporalmente.
Natureza repetitiva do fenômeno
É comum o agressor, após a prática de lesões muito graves, cair em si e ser acometido por sentimentos de remorsos, vindo então a prometer para a família que não repetirá “o incidente”. Tais desculpas geralmente são aceitas pelo cônjuge que se cala na esperança de que o fato não ocorra novamente. Entretanto, tal omissão poderá custar muito caro à criança e ao adolescente vitimizado.
AZEVEDO e GUERRA (2000) falam que autores, em trabalhos mais recentes, estimam a reincidência desses casos em 50 a 60% quando não são instauradas as medidas de proteção necessárias.
Síndrome do bode expiatório
Chamamos de síndrome do bode expiatório o fato da maioria dos agressores de violência física eleger um determinado filho como alvo principal para receberem seus maus-tratos. É muito importante atentar para esse detalhe quando estivermos averiguando uma ocorrência de caso concreto. Às vezes o profissional responsável pela denúncia se deixa enganar pelo agressor ao comprovar o bom estado físico e emocional das crianças que residem com ele.
Entretanto é necessário buscar informações sobre quantos filhos o agressor realmente tem e examinar todos eles individualmente. Tal medida se faz necessária pois pode acontecer do agressor tratar com carinho e atenção suas crianças, mas torturar sistematicamente um determinado filho que geralmente é o primogênito.
Caso concreto: Conheci no interior do estado do Ceará a história de um casal que tinha vários filhos, mas que maltratava a filha de quatro anos de idade. Eles só alimentavam a mesma uma vez por dia e as vezes nem isso. O descaso era tão grande que eles apelidaram a criança de “cachorrinha”. Quando chegava a hora do almoço a família toda se reunia em torno da mesa. O cheiro da comida se espalhava na casa e a pobre criança, já sem forças dentro de uma rede, começava a gemer impulsionada pela fome atroz que sentia. Os pais desalmados gritavam aborrecidos para que ela calasse a boca. Certo dia houve uma campanha de detetização promovida pela prefeitura daquela cidade e os agentes sanitários estavam colocando veneno em todas as casas. O casal agressor então pegou a filha, que se encontrava em avançadíssimo estágio de desnutrição, e esconderam seu corpinho embaixo do colchão da cama, colocando várias roupas em cima. Um dos funcionários já quase no final da vistoria escutou um gemido vindo do quarto onde a pobre menina estava escondida e, curioso, levantou o colchão para ver o que estava provocando aqueles gemidos. Qual foi sua surpresa ao encontrar o corpinho já quase sem vida da garotinha que, levada as pressas para o hospital, felizmente sobreviveu. Hoje ela já tem aproximadamente 10 anos de idade e vive muito feliz com seus pais adotivos que me contaram sua triste história.(CUNHA,2003)
Evolução gradual da violência
A criança que chega a óbito ou é vítima de uma lesão muito grave decorrente de práticas de maus-tratos dentro do ambiente doméstico, quase sem exceção já vinha sofrendo agressões anteriores de porte mais leve, que, entretanto, foram evoluindo para uma intensidade mais severa. Isso significa que a violência é gradual. Logo, se os profissionais e a comunidade em geral criarem o hábito de denunciarem as violências tidas por “mais brandas” evitaremos o desenvolvimento do fenômeno em sua forma mais grave.
Caso concreto: No CECOVI, certa vez atendemos a um caso que chocou toda nossa equipe. Uma mãe completamente ensandecida, juntamente com sua companheira, pegou a filha de oito anos de idade e, com uma colher aquecida pelo fogo, queimaram a criança no rosto, faces, peito, pernas, braços e costas, em uma longa sessão de tortura. A garotinha passou três dias com o corpo coberto por queimaduras de 3º grau, deitada em cima de uma cama, sem qualquer socorro médico. É importante abrir um parêntese aqui para dizer que é comum a demora dos pais agressores em buscar o atendimento hospitalar para seus filhos vitimizados, pois temem serem confrontados e descobertos em suas práticas.Passados os três dias, os vizinhos, desconfiados da ausência da criança brincando na rua como era seu costume, e devido aos gritos de socorro que tinham escutado no dia do crime, chamaram a polícia para verificar o caso. A polícia veio e arrombou a porta da casa levando Sarinha (nome fictício) às pressas para o hospital, onde ficou internada na UTI de queimados por vários meses, onde felizmente sobreviveu. Nossos advogados acompanharam todo o inquérito e o processo criminal que resultou no julgamento e condenação da mãe desalmada. Entretanto, o que nos deixou muito tristes (e porque não dizer “revoltados”) foi o depoimento de uma das professoras de Sarinha que nos relatou ter visto por muitas vezes hematomas palpebrais (olho roxo) na criança, bem como marcas de esganadura em seu pescoço e marcas arroxeadas feitas por surras de cinto. Ao indagarmos por que ela não tinha tomado nenhuma atitude, simplesmente nos respondeu que teve medo de se envolver com um problema que, afinal de contas, não era seu. (CUNHA,2003)
Segundo GELLES, 1973 apenas 10% dos agressores físicos manifestam quadros psiquiátricos graves. Ou seja, 90% dos vitimizadores praticam violência física acreditando estar agindo corretamente. Eles estão convencidos que o uso da disciplina corporal é apenas um método eficaz de ensino e admoestação para as crianças e adolescentes que estão sob sua responsabilidade.
Caso concreto: Certa vez acompanhamos um caso no CECOVI em que a mãe mergulhou a mão de seu filho de 8 anos dentro de uma panela com água fervendo. O motivo do castigo foi porque a criança tinha tirado de sua bolsa R$ 1,00 para jogar vídeo game. Durante a entrevista perguntamos se a mesma estava arrependida e se queria pedir perdão ao filho. Ela então falou que os pais não devem pedir perdão aos filhos, pois isso lhes tira a autoridade.
E quanto a estar arrependida, tinha feito “aquilo” para o bem de seu menino, pois não queria que ele crescesse um vagabundo e ladrão. Conversando mais um pouco indagamos sobre sua história de vida e ela passou então a nos contar sua infância cheia de histórias de maus-tratos. Num determinado momento de seu relato a mãe de Carlinhos (nome fictício) levantou a blusa e nos mostrou as marcas da violência que recebera da madrasta quando criança. Admirados podemos ver cicatrizes enormes feitas com ferro quente por todo seu corpo. Aquela mulher na verdade não era uma criminosa, nem estava acometida de nenhum problema “grave”, psicologicamente falando, mas sua história de vida estava sendo reproduzida fielmente na pessoa de seu filho. Hoje Carlinhos mora em uma casa lar e sua mãe o visita semanalmente. Os vínculos aos poucos estão sendo restaurados. Ela já conseguiu pedir perdão ao filho e ser perdoada por ele.(CUNHA,2003)
Diferentemente das vítimas de abuso sexual, onde a predominância é do sexo feminino, na violência física as vítimas são de ambos os sexos. A literatura internacional, entretanto, mostra que existe uma maior incidência de vítimas do sexo feminino na adolescência.
Especialista no Enfrentamento da Violência contra Crianças e Adolescentes.
Professora Universitária. Advogada. Diretora Presidente CELC.
Master Coach. Analista comportamental.
Referências Bibliográficas:
AZEVEDO, M.A. e GUERRA, V.N.ª (2000). Telecurso de Especialização na Área da Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes. São Paulo.2000.
GELLES, R.J. Child abuse as psychopathology: a sociological critique and reformulation. American journal of Orthopsyvhiatry; 1973.
CUNHA, Maria Leolina Couto, Módulo I do Curso de Capacitação: Enfrentamento da Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes. Na Modalidade Violência Física; CECOVI – Centro de Combate à Violência Infantil, Unicef, Curitiba – PR, 2003.
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